Um homem do povo.
"A vida e suas histórias mirabolantes. Em algumas acredito; noutras, nem tanto". (Luiza Cantanhede)
Estou em um local de comércio diante de uma comprida bancada de madeira que separa a área destinada aos clientes do lugar de trabalho e atendimento dos funcionários, assentado no seu ponto médio, com o fundo voltado para os fregueses, há um móvel que imagino ser uma geladeira de balcão para manter carne exposta pendurada em ganchos, no entanto, devido a sua posição invertida, não é possível saber se há mercadoria armazenada no seu interior. Por causa desse expositor refrigerado, especificamente, a princípio considero que estou dentro de um açougue, mas não garanto, ao perceber que, do lado de fora, disponível ao público, há um espaço amplo com um grande círculo no centro, tudo limpo e bem cuidado com aspecto de praça de alimentação de Shopping Center.
Da esquerda a meia altura onde me encontro vejo um senhor ainda jovem no limite do canto direito sentado numa banqueta alta de bar, sendo esta, uma barra roliça de ferro cromado cravada no chão na vertical e encimada por um assento redondo. Acomodado de frente para o interior do estabelecimento com seus braços cruzados sobre a bancada ele gira a cabeça examinando o ambiente e quando volta o rosto para o meu lado, atento, imediatamente eu penso: ___"Não tem como negar, aquele é o Felipe Camargo". Às suas costas, a praça desapareceu feito magia, e agora, diante da passagem escancarada, só consigo ver do exterior, por um espaço limitado que vai do chão até a altura de 70cm ou entorno disso, uma ponta da calçada pegada a soleira da porta, que está totalmente levantada. É estranho, pois não há qualquer bloqueio físico, no entanto, nada mais é possível enxergar que ultrapasse a referida medida.
Quando retorno a vista, o ator famoso não está mais lá, em seu lugar há uma televisão ligada e apoiada sobre o balcão transmitindo suas imagens. No monitor ele está trajando roupas de época, o cabelo aparece bem cortado, usa óculos e tem as feições de um jovem rapaz.
Ouço alguém me perguntar: ___ Lembra-se dele? Trabalha em novelas da Globo. ___ Sim, eu respondo, lembro-me, fazendo justamente este personagem.
A retrospectiva do seu trabalho continua e o ator surge na tela sem os óculos e com outro aspecto, seus cabelos estão longos e ele diz coisas que não se ouve, até porque, o ambiente já é outro. Estou ao ar livre, e a bancada tomou a forma de uma extensa tábua de madeira bruta enegrecida por ficar exposta às intempéries do tempo sobre um grupo de cavaletes; de pé defronte dela ao comprido, acompanho a troca de imagens no aparelho de TV que está próximo da borda oposta, algo afastado de mim; percebo que um belo campo verdejante, de grama viçosa, ocupa toda a área aberta ao meu redor e uma floresta densa, cujos troncos de árvores formam uma sebe viva, compacta e impenetrável, cerca e delimita todo o entorno à meia distância, lindo de contemplar.
Inesperadamente o cenário transformou-se num galpão de fábrica devassado e espaçoso. Ao fundo, no chão de cimento, há uma pilastra afastada da parede por um caminho coberto que vai de um lado ao outro da construção; na frente dessa coluna há um conjunto de bar formado por uma mesa pequena com duas cadeiras, único mobiliário existente; o Felipe está sentado do lado direito com os braços estendidos e algemados apoiados sobre o móvel, a cadeira do lado oposto encontra-se vazia. Ele veste um uniforme de brim na cor laranja composto de calça e jaleco de manga longa, o seu rosto bem escanhoado e o cabelo raspado na máquina zero deixou o seu semblante semelhante ao de um presidiário. Notei com surpresa a maldade em seus olhos e um sentimento ruim abalou meu coração.
Uma voz anônima diz que seus filhos nasceram, estão crescidos e se desenvolvendo muito bem.
Quando a voz emitiu tal esclarecimento, pelo lado esquerdo do corredor, ao fundo, surgiu um homem de estatura mediana vestido em traje comum: tênis claro, calça de jeans azul celeste e camiseta branca; ele veio ligeiro ao encontro do detento, passou à sua frente e seguiu caminhando sem parar, depressa sumiu às suas costas pela lateral direita. O algemado acompanhou o sujeito com o rosto voltado para ele desde o início, quando ele entrou no salão, e até onde lhe foi possível, antes dele sair de cena. Embora inaudível, deu para eu perceber que os dois travaram um curto dialogo, visto que o detento movimentou a cabeça com vigor enquanto exprimia as palavras, e pelo jeito que mexeu a boca, foi possível notar que ele falava rápido e impunha muita ênfase no que dizia, talvez para fazer sobrepor seus argumentos, ou, para discordar com energia. A especulação fica por conta da distância onde me encontro e testemunho tudo.
A voz anônima tornou a se manifestar para emitir outra notícia: "A preocupação é não deixar suas crianças o verem na tevê com esta nova aparência".
Após ter soado esta informação, descobri que o olhar do sujeito estava diferente, muito concentrado e anormal, típico de um alienado que perdeu a razão. Ele continua sendo o Felipe, um cara ajuizado, mas é possível afirmar, com toda tranquilidade, ser qualquer outra pessoa, um louco sem tino, por exemplo, completamente desvairado e de comportamento imprevisível, menos o Felipe Camargo.
As mudanças intermitentes acontecem em intervalos menores e uma camisa de malha branca e manga curta já substituiu o jaleco de cor laranja que o ator usava. Ainda sentado no mesmo lugar aquele indivíduo passou a fazer movimentos obsessivos e ritmados com a cabeça, para frente e para trás. O susto com esta mutação inesperada e a sua nova fisionomia deixou-me em suspenso.
A voz insistente divulgou novos dados: "Será esse o seu papel, um homem do povo acometido por problemas psíquicos. E tem uma porção de outros, idênticos a ele, espalhados mundo afora".
A explicação é que este desequilibrado criará inúmeras situações inusitadas; sempre calado roubará bolsas de transeuntes distraídos em locais públicos, emitindo grunhidos tomará objetos das pessoas à força, viverá nas ruas e praças tal qual um sem teto dormindo sob as marquises de edifícios. Nem sempre haverá um policial ou segurança por perto para detê-lo. Ficará por conta de a vítima saber o que fazer antes de reagir para se defender dos seus ataques.
De súbito o cenário é outro, de novo. Estamos de volta ao açougue. Acomodado numa posição mais elevada eu observo o ambiente quase de cima para baixo. O nosso personagem está em pé diante da bancada agora de mármore, porém, do lado esquerdo do expositor refrigerado, justo onde é feito todo atendimento aos consumidores; a mudança nos aproximou, ficamos quase frente a frente um do outro.
Ocorre uma grosseira troca de cena e imediatamente o vejo de quatro sobre o balcão tal qual um cachorro cheirando um osso; numa cobiça exagerada o cara abaixou o corpo e quase tocou com o nariz os produtos ali expostos; em seguida e sem motivo aparente, ele retomou o seu lugar e recompôs sua postura. De pé, com os braços estendidos e relaxados à frente do corpo, uniu as mãos sob o ventre e cruzou os dedos, baixou a cabeça e fitou o chão. Do nada, numa ação própria da intuição, ou como se tivesse pressentido que eu estivesse atento ao seu modo de agir, inesperadamente o maluco soergueu as pestanas e relanceou suas vistas na minha direção, somente elas; levei um baita susto e tive pressentimentos ruins ao constatar o olhar da perversidade mirar diretamente no fundo dos meus olhos, ainda que muito rapidamente.
A metamorfose transformou sua maneira de ser outra vez, o rosto continua bem escanhoado, o cabelo crescido em sua cabeça, embora curto, é ligeiramente loiro, mas não tem corte definido e se mostra completamente desgrenhado; por causa das suas vestes, uma colorida e folgada camisa de viscose estampada e uma calça de brim na cor azul, ele exibe a figura de um simples consumidor.
De repente vejo ao meu lado um senhor preto, de idade avançada, que usa óculos e tem a barbicha e as sobrancelhas completamente brancas; coberto por um avental de manga comprida, branco também, e com uma touca bem alva revestindo-lhe a cabeça, ele já surgiu trepado numa escada segurando um cesto com uma das mãos, com a outra apanhava os produtos que acomodava nas prateleiras de uma estante vazia pregada no alto da parede nos fundos da loja. Tais produtos pertencem a mesma linha daqueles expostos sobre o balcão ao alcance do público, os mesmos que provocaram a ganância do idiota sem juízo.
À medida que segue trabalhando no alto da escada, sem perder a visão do salão, o funcionário espreita o doido que, ansioso e inquieto, observa-o de esguelha na expectativa de que se distraia, e, enquanto nada acontece, movimenta o quadril feito um pêndulo, de um lado para o outro incansavelmente, evidentemente, premeditando o exato momento de aplicar o próximo golpe.
As pessoas por trás do doente mental que esperavam a vez de serem atendidas, tiveram apenas os pés revelados no único espaço externo visível de onde eu me encontro, aquele bem na ponta da calçada junto à soleira da porta. Por já conhecerem o tipo e seus problemas psíquicos, ao se aperceberem do furto iminente, exibidamente, e sem o menor constrangimento, afastaram-se dele retrocedendo o passo, todas juntas e ao mesmo tempo, consoante um grupamento militar exercitando ordem unida, e seus pés logo desapareceram das vistas.
Em flagrante expectativa esses fregueses aguardaram a investida daquele sujeito desvairado. Já eu, que não fiquei para testemunhar o feito, acordei.
Assim começou e terminou mais um de meus sonhos. Leitor, grato pela sua companhia. Espero que tenha curtido a leitura.
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