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A cultura pop nos ensina que vidas importam, independente de raça, credo ou gênero

Enquanto a sociedade foi atingida por uma pandemia de impacto histórico, dois países enfrentam às consequências de tragédias resultantes de ações inconsequentes de racismo institucionalizado que serviram de estopim para uma onda de manifestações
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Os fatos– Nos Estados Unidos, um homem negro, George Floyd, 47 anos, foi detido pela polícia de Mineápolis, no dia 25/05/2020, por supostamente usar uma nota falsificada de 20 dólares em um mercado para comprar cigarros. Derek Chauvin, um policial branco, pressionou o joelho no pescoço de Floyd por 8 MINUTOS e 46 SEGUNDOS, numa ação apoiada por outros policiais de sua equipe. Vídeos viralizados pela Internet, mostram a angústia de Floyd, por ter seu pescoço pressionado pelo policial, enquanto clama seguidas vezes, "por favor" e "não consigo respirar", até vir a óbito. Uma das inúmeras e sucessivas mortes de negros por ações arbitrárias da polícia norte americana. A morte gerou uma onda de protestos nos EUA e no mundo inteiro, marcadas pela expressão Vidas Negras Importam (Black Lives Matter).

Reflexões– A ação do policial condiz com os procedimentos previstos em lei para deter um suspeito de utilizar uma nota falsificada de 20 dólares? Cabe ao policial, o papel de juiz (julgar) e carrasco (matar) em relação ao homem detido? O falecido recebeu um julgamento justo? Se fosse um homem branco, o policial Derek Chauvin teria pressionado o joelho no pescoço como fez com o negro?

As tantas ações arbitrárias da polícia refletem um preconceito institucional difundido entre muitos policiais, por todos os EUA. Casos semelhantes e até fatais, se repetem sistematicamente. A atitude de Derek Chauvin com o joelho sufocando o pescoço de George Floyd passa a representar simbolicamente a opressão sistemática da sociedade norte americana contra os negros. Por isso, a repercussão ganhou dimensões cada vez maiores, mais amplas, além das fronteiras, trazendo manifestos também no Brasil que sofre o mesmo tipo de racismo. Em todas as manifestações, temos o agravante de que os movimentos são aglomerações de pessoas, num período de contínua propagação de um vírus altamente contagioso, que provoca Covid-19 e pode levar a morte.

Por várias décadas, a questão do preconceito racial foi explorada nas telas em algumas produções de Hollywood, tendo como destaque, os impactantes filmes de Sidney Poitier, o primeiro ator negro a receber um Oscar de Melhor Ator, por sua atuação em Uma Voz nas Sombras (Lilies of the Field, 1963). Sua presença em filmes como Ao Mestre com Carinho (To Sir, with Love, 1966), No Calor da Noite (In the Heat of the Night, 1967) e Adivinhe Quem Vem Para Jantar (Guess Who's Coming to Dinner, 1967) já elevou a temperatura no debate contra o racismo. Clássicos como 12 Homens e Uma Sentença (12 Angry Men, 1957), O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird, 1962) também contribuem para a reflexão contra o racismo, mesmo o institucional.

Ações arbitrárias da polícia em decorrência do preconceito foram tema de diversos filmes importantes das últimas décadas. As Cores da Violência (1988), Mississippi em Chamas (1988), Faça a Coisa Certa (1989), Crash: No Limite (2004), Fruitvale Station – A Última Parada (2013), Green Book – O Guia (2018), O Ódio que Você Semeia (2018), Queen & Slim (2019) e a série do Netflix, Olhos que Condenam (2019). Em meio aos protestos, uma música clássica ganhou voz com os manifestantes, Lean On Me, de Bill Withers, dos anos 70, que teve uma interpretação emocionante no filme Meu Mestre, Minha Vida (1989), comMorgan Freeman.

Mais fatos– No Brasil, dois casos também causaram grande comoção. O jovem João Pedro, 14 anos, foi baleado e morto numa operação conjunta da Polícia Militar e Polícia Civil, noComplexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, o jovem estava na casa de um familiar, com vários parentes, jogando sinuca. A operação policial tinha o objetivo de capturar líderes de uma facção criminosa.

Mais Reflexões– Se a operação da polícia fosse realizada num bairro rico, custaria a vida de pessoas inocentes? Se o jovem de 14 anos fosse branco, teria sido baleado? A polícia teria invadido a casa de uma família branca para perseguir criminosos? Eles entrariam atirando?

A influência do preconceito no Brasil não é muito diferente das ocorrências nos Estados Unidos. Repetidas vezes, a polícia realiza abordagens em que o preconceito de cor e de classe social tem um peso diferenciado. Especialmente, em favelas e comunidades carentes. Jovens inocentes pagam o preço do preconceito quase que diariamente. O que sobra para as famílias é a dor da perda, sem a devida resposta da Justiça.

O cinema nacional também reflete o preconceito nas telas com o impressionante documentárioA Negação do Brasil (2000) e filmes comoCidade de Deus (2002), Madame Satã (2002), Cidade dos Homens (2007), Ó paí, Ó (2007),Tropa de Elite (2007), Bróder (2009), As Filhas do Vento (2005), Raça (2012),M8 – Quando a Morte Socorre a Vida (2019). A carência de filmes brasileiros que abordam a temática do racismo é bem explicada no documentário de 2000, quando o próprio meio do cinema tem predominânciabranca e mais ainda masculina.

Como se não bastasse, surgem mais fatos– Uma criança, Miguel Otávio, de cinco anos de idade, morreu após cair do 9º andar do Condomínio Píer Maurício de Nassau, uma torre de luxo do Recife. O menino estava sob os cuidados da mulher, dona do apartamento, Sarí Côrtes Real, que foi presa em flagrante por homicídioculposo, quando não há intenção de matar, mas foi liberada após pagamento de fiança, de 20 mil reais. A criança, vítima do acidente, era filho deMirtes Renata, empregada doméstica de Sari Côrtes. No dia do acidente, a empregada havia levado seu filho para o apartamento da patroa por não ter com quem deixar a criança. Entre suas atividades, Mirtes Renata precisou sair para levar os cachorros para passear. O filho queria seguir a mãe, mas a patroa, sendo atendida pela manicure, tentou deter a criança. O alcançou no elevador, conforme registro no vídeo de segurança do prédio, mas deixou a criança seguir sozinha sem segurança. A criança alcançou uma área de risco e sem a supervisão de um adulto, caiu do nono andar.

Outras reflexões – Se a criança fosse a filha ou filho de um amigo, a criança teria ficado sozinha? Se a criança fosse branca teria sido negligenciada? Se fosse filha de um empresário? Teria sofrido o acidente? Teria morrido? E se a filha da patroa tivesse morrido por negligência da empregada? Teria tido a mesma repercussão? A empregada teria as mesmas condições de responder pelo crime em liberdade?

Diante das situações constrangedoras, revoltantes e cotidianas, repetidas vezes que estampam o noticiário, revistas, jornais, telejornais, internet. Chega a um ponto limite em que as pessoas não aceitam mais tratar tais informações como parte da rotina, como algo banal. O sentido de indignação e as reações nas redes sociais que ajudam a reunir as pessoas indignadas, trazem a voz da coletividade. Um grupo de pessoas decididas a agir, a atuar para interromper esse ciclo, a unir forças para que todas as vozes sejam ouvidas. Há um objetivo maior. Que esses crimes parem. Que as pessoas tenham maior consciência.Que a sociedade evolua. Mas para isso, é preciso mudanças.

Os manifestos se alastram pelo mundo ocidental. Estados Unidos, Brasil, Europa. Uma onda de protestos semelhantes ocorrerem em 2010 e abalou os países árabes e muçulmanos. O evento ficou conhecido como Primavera Árabe. Por causa daquela onda de protestos, vários países precisaram mudar os regimes, mudar leis. Ditadores de várias décadas caíram. Perderam o poder. O povo pressionou até que as mudanças ocorreram. Os protestos tiveram início a partir de um único jovem,Mohamed Bouazizi, que ateou fogo ao próprio corpo em protestocontra as condições de vida miseráveis de seu país, a Tunísia, e contra os abusos das autoridades. O vídeo da morte do jovem se espalhou como pólvora nas redes sociais árabes e a população reagiu como um levante inédito no mundo muçulmano, para a surpresa do resto do planeta. O movimento atual poderia ser considerado uma Primavera Racial.

Personagens negros nos quadrinhos trazem representatividade e ajudam a combater o preconceito. Pantera Negra, Luke Cage, Falcão, Tempestade dos X-Men (Marvel), Raio Negro, o Lanterna-Verde,John Stewart (DC Comics). Em fase mais recente, o novo Homem Aranha, o jovemMiles Morales, a Coração de Ferro,Riri Williams, sucessora de Tony Stark. Entre os quadrinhos nacionais, destaque paraAngola Janga – uma história de Palmares, deMarcelo D'Salete,Pele – Jeremias", de Rafael Calça e Jefferson Costa,Tungstênio, deMarcello Quintanilha.

Por fim, os quadrinhos da Marvel criaram um referencial único quando se trata de debater e combater o preconceito. O título X-Men, criado por Stan Lee e Jack Kirby, em 1963, pela editora Marvel, e recriado nos anos 70, por Len Wein e Dave Cockrum, com grande influência do trabalho da duplaChris Claremont e John Byrne, apresentou o grupo de uma raça nova mutante que desenvolve poderes e habilidades especiais, mas despertam todo tipo de preconceito e dos demais humanos, sofrendo perseguições. Em todas as histórias dos X-Men, os personagens enfrentam as dificuldades de serem rejeitados e sofrem o dilema de sempre lutar para proteger a mesma sociedade que os condenam. Embora tragam poucos personagens negros de destaque em suas fileiras, a revista dos X-Men encontra grande ressonância com os movimentos contra o racismo pelos temas continuamente abordados e as posições defendidas nas histórias.

Texto veiculado originalmente no Portal Sirinerd em junho de 2020. @ronilsonaraujocine

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Ronilson Araújo ESCRITO POR Ronilson Araújo Escritor
Recife - PE

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