Inviolada.
Che paúra!
Maria levou o filho na Escola, na volta para casa decidiu passar no Mercado Central e comprar verdura pro almoço, aproveitou a oportunidade para levar uma dúzia de ovos já pensando no bolo que faria pro café da tarde . O Sr. Manuel acomodou os ovos com muito cuidado dentro de um saco plástico transparente e deu um nó na boca. Ela saiu do armazém em direção ao estacionamento sobrecarregada, levava o saco dos ovos preso entre o dedo polegar e o indicador da mão esquerda pinçados exatamente sobre o nó feito pelo comerciante; espremidas contra o corpo pelo antebraço esquerdo flexionado ia a couve e a alface embaladas em um saco de papel sem alça, e, na mão direita, Maria levava sua bolsa cheia de vários pertences além da carteira de dinheiro. No caminho pro carro, passando diante da farmácia resolveu parar e comprar esparadrapo, gaze e pomada, para tratar de um ferimento no joelho do filho. Ainda do lado de fora notou que o farmacêutico havia colocado uma balança encostada na parede ao lado dos caixas e bem à vista de quem entra ou apenas passa em frente da loja. Um aparelho antigo, modelo anos 60, que tem uma plataforma, onde a pessoa pisa, e tem também uma haste, feito um poste, que sustenta um imenso medidor redondo, muito parecido com o relógio Big Ben só com o ponteiro das horas. Ela entrou e dirigiu-se ao balcão no fundo da loja. Enquanto esperava a vez de ser atendida olhou para a balança e teve uma ponta de curiosidade, pensou: "vou me pesar". Bastou formar o pensamento e imediatamente suas mãos já ressumavam abundante suor. Quando ela reparou nisso, abdicou da ideia e virou-se de costas. Chegada a sua vez, pediu o que desejava e, com tudo em mãos, seguiu na direção do caixa. De novo reparou no instrumento enorme à sua frente, com 2 metros de altura, talvez. Tomada de curiosidade arrebatadora ela nem se permitiu ponderar se sim ou se não, caminhou reto e só parou quando chegou defronte do aparelho. Para não se dar tempo de raciocinar e desistir novamente retirou o calçado dos pés com ligeireza e subiu apressada na plataforma, sem se desvencilhar das suas compras. Essa sua atitude impetuosa chamou a atenção de todos que estavam dentro do estabelecimento, funcionários e clientes, que, em princípio, percebendo-a sair andando afobada, pensaram que ela fosse escapulir sem pagar pelo que devia, porém, vendo-a precipitar-se sobre a base da balança, a curiosidade foi geral, e todos acompanharam o movimento da agulha oscilando dentro do marcador visível a quilômetros de distância.
Maria levou um baita susto ao ver o ponteiro, reagindo ao seu ato açodado, sair do zero para dar uma volta completa no mostrador até o infinito em menos de um segundo, algo feito um raio. Tão rápido girou pro lado direito quanto girou de volta pro lado esquerdo até próximo de zero, e continuou oscilando de um lado para o outro por mais três ou quatro vezes diminuindo a cada ida e a cada vinda até parar na medida certa. Inteiramente estuporada ela não acreditou nos próprios olhos, já completamente esbugalhados, e, sem se dar conta, automaticamente largou o que tinha nas mãos. Do seu lado direito a bolsa, aberta, caiu, e tudo que havia dentro somado aos medicamentos que ela levava pra pagar no caixa, esparramou-se pra todo canto. Do seu lado esquerdo caiu o embrulho das verduras e o saco com a dúzia de ovos, que, no chão, virou uma omelete pronta para ir ao fogo. Lívida ela piscou várias vezes até assimilar o número indicado pelo ponteiro, e quando teve certeza de que os algarismos não eram outros mas aqueles mesmos que seus olhos enxergavam, sentiu-se ultrajada pelo mostrador infame. A sensação foi de ter sofrido uma flechada no coração. A partir daí, começou a sua revolta, e Maria verbalizou os próprios pensamentos com uma voz troante e totalmente irada, feito noite de tempestade, com direito a relâmpagos e trovoadas: "QUE AUDÁCIA dessa balança! Acusar-me assim, em público, de um número tão redondo! E GORDO, ainda por cima! Isso é INADMISSÍVEL!"
Teve vontade de esquartejar aquela balança vil, de deixá-la toda desmembrada, com pedaços à quilômetros de distância um do outro para que não houvesse a menor possibilidade de se unirem outra vez, e para que, aquela geringonça, não tivesse a oportunidade de apontar, de novo, uma seta tão aviltante e desonrosa seja para que número for diante de quem quer que seja. Ela, Maria, nunca mais poria os seus pés ali em cima. JAMAIS!
Revoltada ela desceu da engenhoca, colocou o calçado nos pés e abaixou-se para catar suas coisas, quando terminou de recolher seus pertences, ergueu-se e virou-se de frente para o interior da loja, só então deu-se conta do vexame. Todas as pessoas estavam imóveis, mudas e sérias, com o olhar fixo a observar o seu comportamento sem entenderem o que estava se passando. Maria sentiu um calor súbito queimar sua orelha, o rosto e o pescoço; deu falta de algo, olhou para o chão do outro lado e viu, dentro do saco plástico com a boca amarrada, o caldo de claras e gemas misturado com as cascas do que antes foram ovos; fez um muxoxo e depois, para extravasar, ela disse, em alto tom de voz e quase aos gritos: "QUE SE DANE!!!" E saiu repetindo com raiva, QUE SE DANE!!!
Não levou pelo que não pagou e partiu sem olhar para trás.
Dela nunca mais se teve notícia.
A balança continua dentro da farmácia e no mesmo lugar. Inviolada. Pelo menos até agora.
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