Alfarrábio
livros… meu tesouro do intelecto e o meu fetiche estético. Em casa, em meio a tantas obras essenciais da inteligência – e mesmo da estupidez –, preservo em minha estante, sob um cuidado demasiado, todos os clássicos que adquiri ao longo dos anos.
Além de ser um bom leitor, sou também um grande colecionador de livros, um voraz leitor dos clássicos. Minha mãe, de vez em quando, me diz que vou ficar louco por consumir livros em excesso. Não entendo o porquê da "loucura por excesso". A embriaguez, por excesso de álcool, é compreensível; dá pra ver na aparência, no descuido do vestir, nos passos desajustados que expressa com exatidão uma alma em pedaços. E livros em excesso, também descompassa o andar, descuida e desvaloriza o bem trajar-se, tendo então, por fim, o objetivo de estilhaçar a alma humana?
– Tudo em excesso – dizia-me ela – faz mal.
Vez ou outra eu me deixava convencer de que ela estava certa. Ora, pra quê tantos livros se ainda não li os que tenho guardado? Eu deveria gastar meu dinheiro com roupa – que aliás, me faltam camisas, calças e sapatos. As meias não agasalham mais os meus dedos. E as cuecas? Nem ouso falar delas. Às vezes é bom um conselho de mãe.
Quando necessário, por pura necessidade, eu deixava de lado as aquisições exageradas para comprar novos trajes. No entanto, tenho consciência – e ainda tenho – que todos os meus clássicos eram e é um grande investimento. Aqui, atrás de mim, estas volumosas obras serão destinados à educação de gerações e gerações que sucederá.
Eu vivia assim, sem apoio intelectual e sem admiração sincera pelo meu esforço de tentar ser alguém mais inteligente. Mas se eu esperasse motivação, admiração ou apoio, eu estaria fodido.
Contudo, as implicâncias de minha mãe, quando necessário, cessava momentaneamente quando mencionava a minha pessoa, minha personalidade, minhas melhores qualidades aos seus melhores amigos e conhecidos.
– Meu filho é um estudioso. Faz faculdade e vai se formar em breve. Tem uma biblioteca em casa, e lê tudo. Meu filho, graças a Deus é um homem muito inteligente. É o orgulho da mãe.
Os alfarrábios, de mês em mês, conferem-me o prazer de encontrar algumas obras esquecidas, empoeiradas e comidas pelo mofo do ambiente abafado.
Há muitos anos tornei-me um fiel e assíduo cliente do "irmão". Até hoje não sei o seu nome. Chamo-o de irmão porque todos o chamam assim. O seu traje à moda protestante – calça social, camisa branca com versículo bíblico escrito na parte de trás e chinelo de dedo – faz jus ao apelido.
É muito recorrente, ou pelo menos, quando cultivo uma paciência desmedida, discutir assuntos da fé por uma longa tarde com ele. Se bem que, discussões civilizadas, entre católicos e protestantes é quase impossível. Me recuso a ceder o lado racional e sobrenatural do catolicismo para ouvir uma imensa opinião emocional e irrelevante de heresias. Por isso, na maioria de nossas conversas, acabamos ofendendo um ao outro.
– Herético – dizia ele – a igreja católica é a besta. Mudou o sábado do Senhor e instituiu o domingo para a perdição do povo de Deus, rapaz!
– Deixe de ser burro – eu retrucava.
Este detalhe poderia dar motivo suficiente para deixar de frequentar aquele sebo no qual me consumiu tanto dinheiro por tantos anos. Mas este mero detalhe não faz do meu afastamento daquele ambiente uma causa excepcional.
Na realidade, às vezes, um fato tão corriqueiro abre os nossos olhos para uma verdade essencial.
Lembro-me que, numa tarde qualquer, me dirigi num amontoado de livros de literatura brasileira que estava jogado de qualquer jeito num cantinho bem discreto no sebo do irmão.
Eu tentava achar alguma obra de Graciliano Ramos que eu ainda não havia lido. Se não me engano, faltava os Caetés, Alexandre e outros heróis e cangaço. Depois de ter lido São Bernardo, estabeleci como meta estudar todas as suas obras. Levei um tempão tentando procurar o livro.
– Ei, irmão, tem alguma coisa do Graciliano Ramos?
– Eita, irmão, tem que procurar!
Quando percebi que o esforço não estava valendo a pena, desisti de procurar e decidi levar uma outra obra, obra da qual não tinha nenhuma vontade de adquirir.
De repente, o nariz começou a coçar; a máscara, na qual tornara-se uso obrigatório em todo o país por causa do corona vírus, atrapalhava a minha respiração; eu tossia, coçava-me, e levava a mão à máscara para ver se amenizava o desconforto que me causava.
Dentro daquele ambiente, abatido pela agonia do momento, olhei para a palma de minhas mãos e suspirei embaraçado, e, ao mesmo tempo, fiquei aturdido em ver as minhas mãos cheias de poeira
Joguei um volume de Voltaire num montinho de livros. Fui vencido pelo cansaço. Agora não levaria nenhum outro.
Sempre sujei minhas mãos ao tentar encontrar alguma grande obra-prima; e isso não era nenhum problema. Mas ao fim da busca, descontente e decepcionado por ter perdido horas e horas naquele sebo, fui lavar as mãos, indignado.
Ora, lembro-me de ter encontrado, meses atrás, na penúltima vez que havia pisado naquele lugar, obras muito importantes para a construção da minha biblioteca. Adquiri, naquele dia, "Os irmãos Karamázovi", o "Retrato do artista quando jovem" de James Joyce, traduzido por José Geraldo Vieira e "A relíquia" do grande Eça. Achei, com grande esforço, obras em francês, como "Journal d'un Curé de Campagne"de Georges Bernanos, Le spleen de Paris" de Baudelaire, "Le Rouge et Le Noir" de Stendhal e Bouvard et Pécuchet de Flaubert. Os meus olhos cintilavam-se ao ver aquelas obras. Lembro-me de ter me sentido vitorioso naquele dia. Eu negociava os valores com o irmão sem notar que as minhas mãos estavam pretas de poeira. Ele me oferecia Dostoiévski por 50 reais, eu dava 45. Insatisfeito com a minha oferta, pedia-me 47, e eu dizia que só dava 40. Ao fim da negociação eu levava por 32 reais. E assim se seguia com os demais livros.
Mas neste último passeio no alfarrábio, vi que o meu esforço em fuçar aqueles livros foi altamente improdutivo.
Lembro-me de que, naquele dia, eu precisava pagar algumas contas no Shopping, e é claro, para não dar viagem perdida, comprei meia-dúzia de charutos.
– Alfarrábio mal-arrumado! – dizia a mim mesmo – Nunca mais piso naquele lugar. Não tem nada que preste… só tem poeira, desorganização e um fanático evangélico. Não ponho mais os pés naquela joça!
Ao entrar no carro e dirigir até o shopping, pensava eu:
– Quantas vezes eu não sai daquele lugar insatisfeito, sem dar conta de que tudo o que li foi por pura inconveniência? Eu li "os sofrimentos do jovem werther" porque não havia achado "Fausto". Ah!… e aquela vez que comprei Dom quixote por não ter encontrado as obras de José Geraldo Vieira? Aparentemente, isso não demonstra ser um grande problema, pois estou trocando ouro por ouro. Entretanto, Dom Quixote até hoje espera por minha leitura; uma leitura profundamente desatenta e tediosa. Se eu tivesse encontrado "A ladeira da memória", teria lido em uma semana.
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Não é possível… Começou a zoada! O pastorzinho da igreja em frente à minha casa ergueu o som no último volume.
Ah...! Isto acontece costumeiramente quando pretendo iniciar uma jornada como esta, discreta, porém trabalhosa. Já li e reli o parágrafo anterior para tentar dar continuidade ao conto, mas não adiantou, fugiu-me a idéia inicial, perdi o climax.
É até bom que esses movimentos externos acompanhem a conversa, não é ademais algo desnecessário de se falar.
A igrejinha aqui da Rua Santo Antônio é uma de muitas outras. Foi fundada à três meses aproximadamente. É muito comum um indivíduo encontrar tão honrosa graça de fundar uma nova religião como se estivesse criando uma nova civilização. E mais honroso ainda, é quando a nova pedra foi fundada num terreno qualquer, ou num estabelecimento comercial, no qual já foi casa de show, bar, mercadinho ou casa de meretrizes.
Confesso, contudo, a coragem do homem que fundou a sua igreja baseada em sua própria interpretação da história da fé e em suas revelações pessoais. Porém, não é de tudo, esta minha impressão, uma crítica sutil com doses de sarcasmo como bem deixo impresso neste pequeno adendo, pois é neste pequeno fato que apoio-me para descrever um evento que havia a muito tempo me fugido da memória.
Se não me engano, numa segunda-feira, eu tirava o dia para arrumar a casa na ausência de minha mãe. Depois de dar conta do almoço, ao findar a tarde, me dirigi ao alfarrábio do irmão. Eu havia me enganado num primeiro momento com as obras do Ed. René Kivitz; e, num segundo momento, deixei-me levar pela retórica viciada de teologia de botequim e quase abandonei a fé católica pelo protestantismo.
Horas antes de julgar irrelevante todas aquelas obras teológicas e apologéticas do pastor, eu havia assistido dezenas de vídeos dele.
Num certo trecho do vídeo, ele dizia: "´é inegável que o nosso país é um país Fascista, racista, sexista, machista, homofóbico, xenofóbico…"
bem, aqueles argumentos, vazios de conteúdo, sem substância, que só descreviam ou deixavam claro um interesse particular que compactuava com as ideologias marxistas me deixavam abismado. Os seus sermões eram lúcidos – tirando o fato de que ele não usava uma batina, até que as palavras e conselhos assemelhavam-se aos sermões de um padre.
No púlpito, não havia discursos anti-fascistas, anti-racistas, anti-sexistas e etc., havia bíblia, palavra de Deus.
Mas num vídeo em que ele apenas deixava claro a sua opinião política, isento de qualquer falta de vergonha na cara em expressá-la, foi o suficiente para achá-lo estranho e alheio à santidade. Sanidade, talvez seja o termo exato.
Depois de alguns dias, quando voltei a sobriedade, voltei ao estabelecimento do irmão: coloquei os livros numa sacola de compras, e estufei o peito de coragem para desbancar todo aquela falsa teologia; eu pretendia, impetuosamente desmembrar aquelas idéias até as raízes para não sobrar nada, e talvez, "quem sabe", pensei comigo mesmo, envergonhá-lo tanto, mais tanto, a ponto da vergonha transformar-se em conversão, ganhar uma alma para a santa igreja.
Joguei os livros na bancada. O irmão, com a testa engelhada, perguntou-me:
– E aí, é ou não é uma belezura de autor?
– Você é louco? – retruquei, fazendo-o perder as esperanças em me ver de acordo com mais uma entre várias doutrinas protestantes.
– Ah...! rapaz, vai começar?
Quando ele me fez essa pergunta, eu já não sabia mais por onde começar. De repente, a idéia de desconstruir os argumentos dos livros que ele havia me indicado não era mais importante.
Repentinamente, os espirros começaram. Cocei uma, duas, três vezes o nariz. Vi os grãos de poeira no balcão. Passei o dedo indicador sobre ele e apontei o achado que consome aquele lugar
– Por que você não limpa essa merda?
– Mas como é que…
– Olha pra esse lugar – interrompi o seu espasmo. – Toda vez que entro aqui eu fico agoniado, espirrando. Reviro montanhas de livros e fico com a porra da mão cheia de poeira.
– Ora, então por que você ainda vem aqui?
– Ora o cacete, meu irmão! Limpe este lugar, rapaz! traga mais livros de literatura. Olha aquele fundo, cheio de teologia protestante. Tome esses malditos livros. A maior imbecilidade que fiz em minha vida foi lê-los.
O irmão, numa calmaria extasiante, olhou-me com extrema compaixão e disse:
– Se Eu disse algo de mal, revela o mal. Mas se disse a verdade por que me agrediste?
Então respondi:
– E o que tem a ver as palavras de Jesus Cristo com a discussão? Vai recitar a torto e a direito aforismos bíblicos pra dizer que Deus possuiu a sua boca pra dizer verdades eternas? Quer saber, desisto!
Sai de lá com um gosto amargo na boca. Eu estava com sede. Falei de mais naquela discussão. Talvez, eu tivesse sido um pouco injusto com ele o chamando de louco, burro, intolerante e fundamentalista.
No momento da discussão, no calor da raiva, bastava apenas dizer-lhe para limpar o local, deixá-lo organizado para os clientes, ou seja, dizer o óbvio. No entanto, dizer o óbvio me deixa enfurecido.
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