Famigerada fome
Hoje, a vida veio fazer um acertamento de contas comigo. E, para principiar nossa justeza, lembrei-lhe os dias de minha infância mutilada, as noites irreparáveis que vivi a morrer, amiúde, a fome de amor e a sede de virtude. Enquanto contava, com tamanha injúria, os buracos das paredes, transpassados por finas frestas de clarão reluzente, para adormecer tanta penúria. . O meu corpo num estado de sonegação de mim mesmo. Esquecido da minha existência inexistente.
Contei-lhe, também, das prateleiras, armários e gavetas, emocionais - vazios -, escassos, e os olhos, intestinos e ossos - cheios -, transbordantes de uma comichão que subia pela boca. Era a fome me consumindo. A fome comendo a própria fome até chegar ao último nutriente da minha reserva biológica imaginária. Não! Não era a fome de pão! Eram outras fomes. A da mente e a do espírito.
Quem dera, Deus, isso fosse tudo que ela levou-me. Se o fosse, meu cérebro, dedos e cartilagens estariam preservados. Sobrariam-me, ao menos, os marshmallows de papeis e o sumo agridoce do vinagre, tão presentes em minha idade pueril. Mas, como se não bastasse tirar-me os sonhos e arrancar-me as entranhas da alma, o pior foi quando ela roubou-me a vida, hoje.
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Comentários
A gente passa parte da vida acumulando cicatrizes,é levado pela correnteza e, quando consegue aportar, passa a outra parte consertando as goteiras. Muito sugestivo. Gostei.
É verdade, Selenita. É impossível viver sem sermos surpreendidos pela vida: seja positiva ou negativamente.