Aventura Francesa
Nosso casamento foi meio inusitado. Estávamos fazendo uma daquelas viagens que se sonha a vida toda. Principalmente quando se tem vinte e cinco anos. Ele sempre falava na França com aquele brilho nos olhos de menino diante de brinquedos na vitrine. Foi em um ano de namoro que entre as reuniões do partido e noites em bares perto da faculdade que passei a achar graça naquele sonho dele, ao ponto dos meus olhos passarem a brilhar junto.
A semana que sucedeu a formatura foi mais esperada do que a própria formatura em si, quando ele, pegando dinheiro emprestado com o tio e eu convencendo a minha mãe a esvaziar a poupança, viajamos sem muitas roupas, nem dinheiro e malas com rodinhas, para aquela viagem que a princípio era um sonho dele e que acabou sendo meu também.
Eu não sabia falar francês, ele até que se virava e como eu achava lindo ele fazendo biquinho no idioma. Mesmo sem os requisitos básicos de turistas, tínhamos nossos passaportes, curiosidades e uma alegria bem modesta de quem não pode assistir a todas às peças de teatro.
O deslumbramento com o velho mundo perdurou até as duas primeiras semanas, quando se aproximou o dia da nossa volta e ele com mais brilho nos olhos do que antes me pediu em casamento. Casaríamos numa igrejinha perto da pensão que estávamos, íamos unir nossas vidas sob os ares da Revolução Francesa, provar o gosto real de cidadão do mundo. Éramos livres, longe de casa, nosso mundo era a França, eu e ele. Éramos iguaizinhos na saudade e no medo e bastante fraternos, dividíamos a mesma escova, mesma cama, mesmo sonho, mesmo brilho. Por que não casar ali? Foi então numa quinta nublada que eu, com um vestido do tipo verão que comprei para o carnaval e ele, com uma calça jeans, blusa do Vasco e casaco – bem breguinha mesmo, que subimos os degraus da Igreja. Como ficava um pouco alta, dava para avistar a torre, sabe, ela parece lhe perseguir por toda a cidade.
Não tinha mais ninguém além do padre, eu e ele, só um rapaz meio louquinho que morava lá na pensão que se ofereceu para ir também, “fazia questão”, dizia ele. Era uma daquelas figuras meio diferente, um turco de cabelo vermelho que falava um francês estranho, tinha ficado amigo do meu companheiro de viagem, namorado, marido, porque gostara da camisa do Vasco, o fazia lembrar de um time que torcia.
Casamos assim que o padre chegou. Depois daquele momento bonito que ele olhava para mim com aquele ar de Napoleão que vence uma batalha, fomos caminhar pela cidade, passar pelo arco do triunfo.
Foi um ano entre alguns empregos e bicos. Foram lanchonetes, lojas de conveniências, até posto de gasolina, enquanto ele andava pelos lados de uma ONG meio atípica que descobriu. Sabe, eu até que curtia aquela vida, principalmente nos últimos meses quando arranjei um emprego numa biblioteca, lá no centro da cidade. Vivia envolvida em livros e pegando gosto por café, acho que vício.
Apesar da minha graduação na faculdade, conheci melhor Sartre, Marx, algumas particularidades da Revolução Francesa que só se conhece na França. Lá era um lugar agradável, conheci muitas pessoas que freqüentavam: estudantes, professores, estudiosos. De repente já tínhamos o que fazer nos finais de semana, era aniversário de fulano, festinha na casa de cicrano; ele no começo me acompanhava, mas depois a ONG começou a marcar reunião no sábado à tarde que se estendia até o domingo à noite. A gente que todo sábado passava pelo arco do triunfo para ensaiar como seria quando “triunfássemos”, já não tínhamos mais tempo para isso. Eu saía logo cedo, queria arrumar os cabelos antes ir trabalhar, ele reclamava do baralho do secador logo de manhã porque fazia pouco tempo que tinha ido dormir, do cigarro ainda saia fumaça no cinzeiro.
Estávamos tão ocupados que sinceramente parecíamos estranhos. Ele estava mais magro, cabelo comprido e a ONG consumia todo o tempo. Agora, se importava com as tartarugas marinhas que não conseguem sobreviver ao nascer.
Eu tinha acabado de conhecer um cara legal que era sociólogo como eu, tinha até me avisado que havia vaga para professor numa escola de inglês perto da biblioteca. Ele nem me acompanhou nesse meu processo, não tive chance nem de lhe avisar. Depois de muito suor nas mãos e aflição, me aceitaram. Eu não conseguia acreditar naquilo, eu, depois de dois anos num lugar que aprendi a amar pelos olhos dele, era agora professora de inglês numa escola em Paris. Saí de lá com um sorriso que não fechava, estava tão louca que não sabia como voltar para casa, saí caminhando por uma rua errada, andando... andando... voltei ao mundo real quando o meu caro amigo buzinou, deu uma risada e me disse que o caminho não estava muito certo, abriu a porta do carro e ofereceu carona. Antes de chegar em casa pedi ao meu amigo para passar lá no arco do triunfo, desci, tirei os sapatos e passei pelo arco, eu triunfara, só faltava ele ali para me ver.
Meu amigo não entendeu muito bem aquilo, tirou uma garrafa de vinho do porta-luvas do carro e me deu. Tomei um, dois goles e pedi para ir para casa.
O trânsito não estava a meu favor, se ele tivesse celular teria ligado. Será que ia encontrá-lo em casa? Ultimamente a gente mal se falava. Mesmo assim queria tocar os seus cabelos, olhar nos seus olhos e ver aquele brilho – que fez do seu sonho o meu – agora, com orgulho de mim.
Desci do carro, nem agradeci, abri a porta e com toda empolgação de quem ganha uma aposta com o destino contei-lhe o acontecido. Não entendi os seus gritos e a sua reação. Chamou-me de traidora, infiel, egoísta e coisas em francês que me recuso em traduzir. Reclamou do meu cabelo, do meu hálito de bebida e disse que eu tinha o decepcionado. Que eu não me importava com o que ele fazia, que eu tinha perdido o espírito aventureiro que nos unira no começo. Na verdade, eu só tinha vontade de chorar, mas não sei por que a lágrima não caía. Agora estava deslumbrada com os europeus, com aquele europeu que me trouxe de carona!
Não dizia nada, queria, mas não consegui. Pensei até em falar do arco do triunfo que fora invenção dele, mas perdi a vontade. Ele ali na minha frente, parecia que nunca tinha o visto antes, senti-me sozinha como quem se perde no parque ou num país distante.
Acordei com ele me olhando sentado na cama ao meu lado. Abri o olho, fechei, abri de novo. Por instantes desejei minha mãe entrar no quarto e abrir a janela para o sol entrar. Mas não tinha sol, não tinha minha mãe, não tinha aquele louquinho de antes por quem me apaixonei. Não era o cabelo desarrumado, o hálito de cigarro, não, nada disso, era aquele olhar vago no lugar do brilho de antes. Ele falou que tinha bebido e que sentia muito pelo que aconteceu, que teve inveja de mim, ciúmes de mim. Queria o perdão, mas queria também um tempo para dar um jeito na vida. Eu resolvi sair, mudei de quarto na pensão, passamos a ser vizinhos. Comecei a dar aulas, melhorar meu francês, freqüentar outros lugares, tentei visitá-lo no seu aniversário, mas havia uma festa promovida pela ONG. Ele me recebeu, mandou-me entrar e ficar à vontade. Entrei, mas não consegui ficar muito à vontade num lar que fora meu. Sei lá, parecia um outro lugar. O pessoal agora defendia os pássaros silvestres, as tartarugas já eram.
Pensei no Brasil, pensei em casa, pensei no sonho dele. Pensei na igrejinha, no arco do triunfo, no frio da noite, na lágrima que não caiu, nas páginas em branco que minha vida estava se tornando. Chorei, pus as mãos nos olhos, tinha raiva, vergonha, ódio, amor, saudade de casa, da minha irresponsabilidade, da minha mochila, ou melhor, do que fora a nossa aventura francesa.
Agora ele estava ali, sentado ao meu lado novamente depois de dois anos separados. Parece que tudo passou por segundos enquanto ele ficava esperando minha resposta. Respirei fundo, enxuguei as lágrimas, tirei os olhos da torre, afinal ela parece nos perseguir por toda a cidade, e olhei para aquela criatura sentada ao meu lado no banco da praça. Tinha de fato dado um rumo na vida, saíra da organização, tinha acabado há pouco o mestrado em Política Ambiental, estava cheiroso, com cheiro de brasileiro. Estava ali para me pedir em casamento de novo, depois de dois anos me ignorando. Tinha, em uma das mãos, as passagens aéreas para o Brasil e um livro de Baudelaire, na outra. Disse que eu era uma grande mulher e que me amava, que tinha orgulho de mim e que sabia o quanto eu sentia falta de casa, por isso, voltaria ao Brasil por mim. Que tinha dado esse tempo para se orientar, mas que pensou direito e ali não era o nosso lugar. Queria voltar para mim e para casa.
Ele parecia mais maduro. Acho que o preferia com olhar de Napoleão que vence uma batalha. Lembrei da calça jeans, com camisa do Vasco e casaco. Ele ia voltar ao Brasil com certeza, estava decidido, seus olhos tinham brilho outra vez. Só que como aquela lágrima que não caiu, não consegui aceitar. Meus olhos não seguiram o brilho dos seus como outrora.
Sabe, tinha acabado de descobrir que no fundo eu sempre quis ter vindo, ter viajado junto, e que apesar da saudade de casa isso aqui passou a ser meu também. Ele estava atônito de meu lado com minha decisão, levantei as mãos, escorreguei as duas pelo seu rosto, passei pelos lábios e disse que o achava lindo fazendo biquinho no idioma. Desejei-lhe sorte, levantei-me e sai bastante segura do que tinha feito. Faltava meia hora para a minha próxima aula, dava tempo de pensar que Napoleão um dia perdeu uma batalha e que a Revolução, ah, essa já tinha acontecido em mim bem antes, desde quando saí do Brasil.
Sentirei saudades dele, do meu menino sonhador que um dia me pediu em casamento numa igrejinha, vestido de jeans, camisa do Vasco e casaco. Do meu menino que me deu todo um sonho de presente, o seu.
Madalena Sofia Galvão Viana
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