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O dia em que a toga caiu

Na sala de audiência, os dias não são todos iguais, porquanto ela faz com que não sejam. Sua tendência anímica é assimilar cada experiência como única, sorver o hálito da verdade para pacificar animosidades.

Dois atores sociais em conflito: um, a representação do trabalho; o outro, o símbolo do capital. Seu ofício é entregar-lhes a certeza jurídica, com justiça, é a sua renhida aspiração. A toga a distingue como investida do imperium público para dizer o direito. Dos incautos, dos néscios, até consegue ocultar sua humanidade, que, no entanto, é clarividente para os que lhe captam o sorriso dos olhos, as chispas de luz espargidas pelo coração, embora ela saiba obstar o anuviar da razão, eis por que canta “Fio de esperança”.

Ainda como juíza substituta, peregrina pelo Estado a fim de emplacar sua missão nas plagas onde esteja designada. Naquele mês, era a vez de encantar o “Velho Chico”, de poetizar seus rochedos, como também, de ouvir dolentes desabafos de cortador de cana e deparar-se com a cruenta realidade de assistir-lhe rogar a almofada de carimbo para assinar a ata, paradoxalmente ao uivo, cada vez mais audível, da virtualização do processo. “Estou na iminência de deflagrar meu protesto: assinar minhas sentenças com a impressão digital” – não se conteve a cidadã indignada escapulida da magistrada.

Um dia após outro, ouvindo e sentenciando. Daquele, em especial, ela não esqueceria. Cumpriu seu ritual após raiar a alvorada: oração, cabelos impecavelmente penteados... Hora do ofício.

Vestiu a toga que não lhe encouraçou, consoante sói acontecer nos vitimados pela “juizite”. Na sala de audiência, em pauta mais do que uma lide trabalhista, uma contenda familiar entre irmãos consangüíneos, uma animosidade sem par. Um dos irmãos, o empregador, aparentava serenidade, submissão ao infeliz desígnio de sofrer a estocada de um punhal por quem lhe cabia amar. Do outro, uma cortante apatia.

Um acordo tão somente pecuniário poderia bastar à magistrada, que, indissociada do seu viés humano, não vira nisso a solução mais plausível. Idealmente, deixou cair a toga. Levantara da cadeira do espaldar mais alto resoluta ao exercício do amor transmitido pelo Mestre. “Estou decida a homologar o acordo na condição de vocês dois darem-se as mãos como devem fazer dois irmãos”. Enlaçou suas próprias mãos nas mãos desses irmãos que, após longo tempo, olharam-se com menor rispidez, ao menos, por segundos – para ela, um “Fio de esperança”.

Fez uma oração espontânea. A esta, seguiu-se, coletivamente, a Oração ensinada pelo Pai. A sala da audiência converteu-se no espaço da utopia: litigantes de mãos dadas, magistrada desemoldurada da autoridade. O choro que ela há muito continha, verteu, inelutavelmente. Num estado de estupefação, os advogados olvidaram suas teses e foram cúmplices no choro. Choraram as testemunhas; a assistente de audiência chorou - e por que não?!            

Pois, então, naquele ambiente perfumado de amor, a letra da lei não se fez fria. Rodopiou nos redemoinhos do coração.

 

Simone Moura e Mendes  

 (Publicada em O Jornal, edição de 29/05/2012)

www.simonemouramendes.com

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
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