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Mais "lumbriga" que os da roça

Pessoas de hábitos singelos, de vida intensa e deliberadamente oferecida em favor do bem-estar de muitos de seus semelhantes. Exercem os misteres, na forma que a vida urbana lhes demanda, durante os dias úteis da semana: ela, como médica, ele, como engenheiro. Acompanham a formação dos dois filhos bem de perto, a fim de não darem ensejo a eventuais desvios a que a juventude se suscetibiliza. Cuidam da organização do lar, compartilhadamente. Tudo, porém, com o mínimo de estresse.

Chegado o fim de semana, assoberba a camioneta de víveres e o que mais de necessário para uma estada minimamente confortável, e sobem a serra pela estrada de massapé, margeada por canaviais, na busca de um refrigério na vida bucólica de sua pequena fazenda, localizada na zona da mata alagoana. Dividem as tribulações cotidianas, entre si e as galinhas, bodes, cavalos, sapos, cachorros e outras criaturinhas daquele habitat. Banham-se com os filhos no açude, colhem as minhocas da terra a fim de fisgarem peixes, que são logo tratados pela moradora da propriedade. Cavalgam a fim de melhor explorarem, de aspirarem às belezas da região.

Sem qualquer vocação a eremitas, não raras vezes, convidam amigos e familiares a se regalarem com o aconchego daquele lugar, serenarem as mentes, reenergizarem-se nas nascentes que se derramam por entre a pequena reserva de Mata Atlântica, esmeradamente preservada no interior da diminuta gleba; fazerem trilha por entre a vegetação nativa, colherem frutas do pé... Sentirem Deus falando por meio de cada organismo vivo.

Num desses feridos prolongados, esses afáveis anfitriões receberam quatorze pessoas, entre familiares e agregados. Época de festa junina, o serenado lugar foi conspurcado pelos estrondos de rojão e por outras ruidosas manifestações da alegria dos convivas. Logo, na primeira noite, ouvia-se de longe a assembleia extraordinária dos sapos, e eram coaxares de indignação ante os decibéis descomunais. A natureza se acomodou, por fim, e até o céu conteve o choro.

As primeiras refeições foram fartas: canjica, milho verde, cuscuz de milho e de arroz, bolo, ovo de capoeira, sucos naturais, queijos e pão torrado, no desjejum. As galinhas do terreiro, abatidas longe dos olhares citadinos, garantiam o almoço. Os anfitriões, por outro lado, não contavam com tanta disposição e gula dos parentes. Refeição após refeição, atônitos, assistiam ao vertiginoso declínio da fartura, tementes da completa escassez.

Último dia, último desjejum. A providente anfitriã desceu o morro até a casa do morador. “Seu Zé Ciço, Seu Zé Ciço, socorro! Ceda-me o fubá de milho da ração dos cachorros, que nada mais há para ser acompanhado pelos derradeiros ovos com salsicha”. “Credo, Dra. Ana, o povo acabou com todo aquela cumida? Pode carregar a mistura que truce da fêra ontem. Eita que parece que esse povo da cidade tem mais lumbriga que o de cá da roça”.

Preparado o cuscuz misto: resto de fubá de arroz e o de milho subtraído daquele de categoria inferior, comprado a fardo para alimentação dos cães. Todos perceberam que deviam comer com parcimônia, a fim de que ninguém voltasse com fome para a Capital. Quis um do grupo dizer algo, engasgou e quando o ar saiu, todos os presentes testemunharam “au, au, au...”
Simone Moura e Mendes
 
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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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