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As razões de amar


Em busca de novos horizontes para sua vida estreita de suburbana, para o casamento morno, Norma Lúcia deixou o recesso do lar, onde militava à boca do fogão, e arranjou emprego no comércio. Não fora difícil, a loja era do cunhado, e o cunhado achava que era melhor pagar a um parente que a um estranho, pois deste modo o dinheiro ficava mesmo em casa.

O marido de Norma, o Sandoval, era um homem bom, todos diziam. Decente, honesto, de bons costumes, direto da casa para o trabalho e vice e versa. Infelizmente Deus não lhes permitiu filhos, mas conformavam-se ambos com a Vontade Divina, e criavam um pequinês com mimos de criança.

Sandoval era ótimo, tratava a Norma Lúcia com uma bondade extremada e extremosa. Todo sábado à tarde passeavam a beira mar, tomavam uma água de coco verde, e voltavam para casa, tomar café com leite e sonho de padaria, assistir a novela e fazer o amor semanal. E se considerava um felizardo! Norminha, como ele a chamava, era uma bela mulher de seus trinta e cinco anos completados e ainda de cintura fina, pernas grossas, bunda rebolosa e cara engraçada. Muito discreta e modesta, guardava seus encantos para Sandoval, que, de medo de estragar aquela criatura bela, mal a tocava e quando o fazia era cheio de respeito.

Norma Lúcia casara-se aos vinte e oito anos. Idade em que quase todas as suas amigas já eram mães de filhos crescidos.

Lógico que casar tão tardiamente não foi por sua vontade. Bem que tentara! Ficou noiva quatro vezes. E nas quatro vezes a decepção foi enorme.

O primeiro noivo – ela tinha apenas 15 anos – era um ciumento! Não veste isso, não usa aquilo, não vai ao colégio. Ressabiada, Norminha começou a antever o que seria aquele casamento.

Um dia, numa sessão de cinema, por infelicidade olhou de lado. Mas, não estava olhando para nada realmente, apenas queria livrar-se de um incomodo torcicolo. Gerson sapecou-lhe um beliscão torcido que a fez gritar, de susto e de dor. Foi para casa em lágrimas, com uma ronxa no braço e o coração partido. Despediu-o incontinente – fosse beliscar a mãe! – não queria mais casar. Protestos gerais da família, que já contava em melhorar a situação financeira – o tipo era rico, filho de pai usineiro – e empregar o irmão. O sujeito ainda a perseguiu por algum tempo, depois desistiu.

O segundo noivo, Ricardo, era um rapaz ótimo! Cheio de sonhos, de ternura. Um homem progressista e de visão. Insistia que estudasse, cobrava notas altas na escola – Norminha cursava magistério – falava do futuro. Um dia, bestamente, morreu atropelado por um ônibus. Norminha quase morreu de dor.

O terceiro noivo foi por correspondência. Desistiu por descobrir que o endereço paulista era um presídio – informação de uma tia que morava em São Paulo e estava de visita: Menina, isso aí é o Carandiru. Você está louca? Esse camarada é detento! – pesquisas feitas, a informação foi a pior possível: Alexandre era condenado por tráfico de drogas e homicídio qualificado. Ia pegar 30 anos, sem direito a revisão de pena.

Decepcionada – ele era bom de lábia, principalmente escrita – Norinha jurou que agora não noivava mais. Não queria mais saber de casar!

Entretanto apareceu Rogério. Um doce de rapaz! Tão delicado, tão gentil! Tão sensível! Tão maravilhoso! Tão bom cozinheiro! Tão poeta! Um verdadeiro artista.

Foi ele quem deu cabo da virgindade de Norminha, tão preciosamente conservada, durante os três primeiros noivados. Estava com vinte e cinco anos, não agüentava mais!

Mas, Norminha notou uma coisa muito estranha. Rogério relutou muito antes de irem para cama. Foi preciso muita insistência por parte de Norma, que praticamente o obrigou. Ele dava mil desculpas: E a mãe dela o que pensaria? E por que não podiam esperar pelo casamento? E o respeito que ele lhe votava?

Argumentos demais – pensou Norma desconfiada – para uma coisa tão simples. Com os dois primeiros noivos tivera que conte-los, e mesmo o presidiário só falava nisso nas cartas. Deu um ultimato: ou ia pra cama com ela ou estava tudo acabado!

Pressionado, Rogério tomou um porre, e bêbado cumpriu o prometido – o exigido! – como uma obrigação.

Norminha ficou decepcionadíssima com a “performance”. Não era assim que imaginava o “negócio”. Apesar de não ter experiência prática, sabia muito bem da teoria. Uma amiga casada, a quem confidenciou – morta de vergonha – o fato, alarmou-a:

-         Norminha você me desculpe, mas eu tô achando que esse camarada é bicha!

-         Como assim, Cleuza? – disse Norminha, chocada.

-         Bicha, ora! Você sabe...

-         Bicha? Você quer dizer bicha, bicha? Viado?

-         É, Norminha – repetiu Cleuza, já arrependida de ter falado – viado.

Com várias pulgas atrás da orelha, Norminha passou a seguir Rogério. Um belo dia, depois de muita caminhada, encontrou-o aos beijos dentro do carro com um rapaz.

Apresentou-se e devolveu-lhe a aliança. Nem disse nada. Dizer o que?

Decepcionada mais uma vez, partiu para estudar – já havia concluído magistério – num curso de contabilidade. Foi lá que conheceu Sandoval e como o vício é uma coisa triste, meses depois estava noiva, feliz, comprando trens de cozinha – desnecessariamente, pois o enxoval dos três noivados anteriores era volumoso e completo – para casar dali a seis meses.

Não se arrependia de ter casado com Sandoval. Estava cansada de ser chamada de solteirona, de “tia” pelos filhos das amigas. Não fosse só por isso, Sandoval era um homem pacato. Muito, muito pacato! – qualidade apreciada pelas amigas e parentas.

Nos quase dez anos de casamento nunca tiveram uma briga, apenas rusgas simples, pois Sandoval cortava qualquer possibilidade de discussão.

-         Vamos deixar de briga, minha filha, você sabe que tenho razão!

-         Mas, Sandoval – dizia Normal Lúcia, muitas vezes indignada até a alma – e as minhas razões?

Mas, Sandoval sacudia bovinamente a cabeça e encerrava a discussão. E quando Norma Lúcia chorava alto, aos soluços, ele se retirava indo passear na praça até que ela dormisse ou se calasse. No outro dia, já de volta do trabalho, trazia-lhe um mimo, o chocolate branco de preferência da mulher, e como que adoçava a boca de Norminha. Só tinha um defeito, não queria que ela trabalhasse: Pra que? Argumentava ele, se seu emprego rendia bem e eram só os dois?

Ficou fulo da vida quando soube que ela havia sido admitida na loja do irmão como crediarista.

-         Você não vai, Norminha, sinto muito! – disse ele impaciente – Quem vai cuidar de mim? Quem vai cuidar da casa? Quem vai cuidar do Mimoso?

-         Ora! – disse Norma, com calma – já chamei Dona Deinha para fazer minhas vezes, ela vai passar e lavar para mim, colocar a comida de Mimoso e de você eu cuido, como sempre.

-         Como sempre não! – rugiu ele – Você não estará mais no comando do barco, isto vai desgovernar tudo.

-         Mas, meu querido – disse Norma com um sorriso suspeito de malícia, que Sandoval não viu – é apenas o tempo de poder juntar um dinheiro para comprar um equipamento de televisão daqueles de cinema!

Ai Sandoval concordou. Era um sonho antigo, fazer um cinema em casa.

E lá se foi Norma Lúcia com sua simpatia e sua cara bonita para a loja do cunhado. E não ficou na matriz por que preferiu a filial, em bairro mais afastado, com movimento menor, pois não tinha ainda experiência. O cunhado alegrou-se, de há muito precisava de uma pessoa de confiança naquela loja e quem melhor que a Norminha?

Pois bem, seis meses depois a loja ia de vento em popa, dando um lucro melhor e sendo mais freqüentada. Norma Lúcia era uma competência em vendas.

Os empregados – todos homens, foram selecionados a dedo por ela, rapazes bonitos, jovens, sorridentes – atendiam a clientela com uma prestimosidade impar! As mulheres preferiam comprar ali.

Sandoval estranha um pouco. Fica triste por vezes por que a Norminha, a sua Norminha, mal tem tempo para ficar em casa. É reunião quase toda noite, são congressos de lojistas, são encontros de comerciários.

Mas não reclama por que ela desenvolveu um forte senso de independência e ele sente que a qualquer momento aquele navio, aquele transatlântico em que se transformou a mulher que militava em seu fogão, pode partir definitivamente para não voltar mais e é por isso que fica, dócil e satisfeito, com o Mimoso no colo em frente à tv de 32 polegadas, com DVD, e todos os recursos modernos.

Essa era uma das razões pelas quais amava aquela mulher, dantes tão cordata e hoje tão fugidia, e se acreditava amado por ela.

Mas, Norma Lúcia, com seu sorriso de moça direita encontra outras razões para amar Sandoval, uma delas é que fora a tv, ele não enxerga um palmo à frente do nariz.

 

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Nádia Dias ESCRITO POR Nádia Dias Artista
Maceió - AL

Membro desde Setembro de 2009

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