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A Luz Azul

 

   Às vezes me pergunto se o que aconteceu naquele dia foi realmente verdade. Se aconteceu mesmo. Não que eu esteja duvidando de minha memória, ou sei lá; mas a verdade é que nunca acreditei no sobrenatural e, no entanto, aquilo que eu vi, foi sem dúvida, coisa do outro mundo, como dizia minha santa avó, que Deus a tenha.

   Naquela manhã de terça eu acordei muito bem disposto. Tomei ligeiro o meu simples desjejum. Pão, ovos mexidos e leite com um pouco de café; era aquilo todos os dias, desde que me dou por gente. Eu morava sozinho e preparar o café da manhã para mim, era algo muitas vezes tedioso. Mas a vida é assim...

   O sol estava forte e os passarinhos na janela da cozinha me diziam que aquele seria um dia de bastante trabalho. Eu precisava tirar o leite das vacas; três, para ser mais exato. Preparar queijo, estocar o leite em garrafas plásticas de refrigerante e pegar algumas verduras no pomar para preparar o almoço. Depois da cesta tinha que pegar os ovos no galinheiro, empacotar tudo com cuidado para que não quebrassem no caminho até a cidade e colocar tudo na caminhoneta. Daí eu ia até a cidade tentar vender tudo no mercadinho do seu Tomás. Em seguida, era só voltar para casa, tomar um bom banho e preparar um prato de arroz com queijo, receita da minha tia Gertrudes, que Deus a tenha também.

   Eu passei todas as minhas tarefas do dia na mente enquanto mexia os ovos e tomava um banho. Tomei meu cafezinho, lavei a louça (bem pouca, já que sou sozinho) e saí porta a fora.

   Realmente, o dia estava lindo. Eu morava num sítio simples, bem modesto, mas aquela visão do amanhecer me dava uma felicidade que não consigo explicar. O pomar de um lado, o gado pastando do outro, um rio cortando a passagem que dava para o galinheiro lá no fundo. Era tudo o que eu queria para viver em paz.

   Comecei meu trabalho. Queria terminar tudo rápido para dar tempo de ir à cidade e voltar ainda de dia. Voltar no escuro por aquela estrada de barro se tornava cada vez mais perigoso. Estoquei o leite, preparei o queijo, fiz o almoço. Tudo corria como eu tinha planejado.

   Depois do almoço dormi um pouco e o galo cantou na hora certa de ir à cidade. Juntei tudo e fui dirigindo até o mercadinho vender meus produtos. Seu Tomás costumava comprar leite, queijo e ovos a mim desde que fui morar no sítio. Ele revendia tudo por quase o dobro do que me pagava e fazia a maior propaganda do meu trabalho. Eu não ligava por ele ficar com a maior parte do dinheiro. Se quisesse ficar rico continuaria trabalhando na capital como advogado e não ganhando apenas o suficiente para sobreviver com a venda de lacticínios... Mas isso é outra história.

   Depois que vendi tudo ao s. Tomas – desta vez, acho que lhe pesou a consciência e ele me deu um pouco mais de dinheiro – arrumei as coisas na caminhoneta e vi uma grande movimentação no centro, decidi dar uma olhada. Tinha um monte de gente ao redor de um homem deitado no chão. Eu, curioso como sempre, não pude conter-me e fui olhar o acontecido.

   Quando cheguei mais perto, percebi que o homem estava morto. Tinha muita gente em volta. Até criança e cachorro tinha. O homem possuía grandes feridas na cabeça e suas pernas estavam praticamente esmagadas. As pessoas comentavam que ele havia sido atropelado pelo caminhão de gás. Foi morte instantânea, ouvi alguém dizer.

   O estranho é que eu não conseguia sair dali. O rosto do homem expressava um terror indecifrável. Acho que era a cara de alguém que é apresentado face a face com a morte. Seus olhos ainda estavam abertos, a boca se contraíra uma última vez num gesto de medo e horror. Eu estava pregado no chão e não conseguia me mover.

   Depois de um longo tempo veio uma ambulância e levou o homem morto. As pessoas começaram a voltar para suas casas e eu retornei a mim. Quando finalmente percebi onde estava, era noite. Saí correndo até a caminhoneta, amaldiçoando aquele cadáver e aquele povo curioso que tinha atrapalhado meus afazeres...

   O sítio não ficava longe, mas não demorava menos que uma hora e meia para chegar. Com toda a velocidade e quase sem enxergar o caminho no escuro, eu viajava de volta para casa.

   De repente, vi uma luz forte lá longe, quase no fim da estrada. Fechei e abri os olhos, repetidas vezes, a fim de enxergar melhor. A luz continuava ali. Pensei que minha casa poderia estar em chamas, mas a cor da luz era diferente do fogo. Brilhava num tom azulado e, mesmo morrendo de medo, segui meu caminho. A luz, de alguma forma, me chamava. Me encantava com seu brilho.

   Em um dado momento a luz foi ficando mais fraca e mais fraca, até que se apagou. Meu medo, apesar de não acreditar nessas coisas, também cessou por uns instantes. Até que a luz voltou com toda a intensidade e eu, atordoado com todo aquele brilho, não consegui controlar o volante e bati a caminhoneta numa árvore.

   Minutos depois, ou horas, não sei dizer ao certo, acordei. Minha cabeça doía forte e minhas pernas formigavam de tão dormentes. Desci do carro e lá estava. A luz azul que eu vi, saia de uma caixa aberta no meio da estrada. Ainda tonto e confuso caminhei até lá e peguei a caixa com as duas mãos. Era do tamanho de uma caixa de sapatos, mas sua luz iluminava todo o caminho.

   Coloquei a mão esquerda dentro da caixa e senti que algo me puxava para dentro. Puxei a mão de volta e a luz agora cobria-a até parte do meu braço. Nesse instante, perdi os sentidos e caí. Novamente acordei, momentos depois, mas não mais estava na estrada. Estava na praça da cidade. Era dia, o sol queimava forte e eu suava muito.

   Caminhei até o centro da praça e dei de cara com o homem morto que vira à tarde. Mas, para minha surpresa, não estava morto. Lia o jornal local e tomava um suco de laranja sentado num banco da lanchonete do s. Joaquim. Eu continuei em pé, no meio da praça, olhando o homem, incrédulo.

   Foi aí que ouvi o sino do caminhão de gás. O homem fechou o jornal, pagou o suco e saiu em direção ao mercado. Então eu entendi o que estava acontecendo. Aquele era o momento em que o homem iria ser atropelado. Nesse mesmo instante sai correndo e puxei o homem de volta para a calçada da lanchonete. O caminhão de gás passou numa velocidade tremenda e por pouco não nos atropelou os dois.

   Duas crianças estavam dentro do caminhão de gás. O motorista vinha correndo atrás, quase sem fôlego. Um pouco mais adiante as crianças finalmente acharam o freio e pararam o carro. O motorista disse que elas entraram no caminhão enquanto ele fazia a entrega de um botijão.

   O homem, que não estava morto, nem muito menos tinha sido atropelado, olhou bem nos meus olhos. Emocionei-me ao enxergar naquele homem toda a gratidão que jamais virar em lugar ou pessoa alguma. Ele me agradeceu com um forte abraço e colocou na minha mão dez notas de cem. Eu não quis aceitar, mas ele foi embora sem discutir.

   Eu ainda vi os garotos apanhando da mãe pela travessura, os pedidos de desculpas do motorista, o povo alarmado com o barulho. Do outro lado da praça, o homem a quem eu salvara a vida, abraçava e beijava os três filhos pequenos e a esposa, com um amor que eu também jamais presenciara.

   Voltei para a caminhoneta e dirigi até em casa. Estava cansado demais para cozinhar e jantar. Deitei na cama com roupa e tudo e esqueci até de apagar as velas. Faltou energia aquela noite. Quando acordei de manhã tinha duas vacas na minha sala. Eu também tinha esquecido a porta aberta. Fui até o carro pegar as caixas de ovos e o dinheiro que recebi de s. Tomás e lembrei do meu sonho com a luz azul. Ria comigo mesmo quando cheguei no carro e tomei um susto. Além do dinheiro de s. Tomás, havia dez notas de cem em cima do banco do carona.

 

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Jacqueline Freire ESCRITO POR Jacqueline Freire Escritora
Maceió - AL

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