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O Velho

A chuva deixara grandes poças de lama no caminho de terra vermelha. As árvores altas que enfeitavam a trilha até a casa, não davam espaço para que o sol penetrasse e iluminasse aquele lugar. Algumas flores amarelas podiam ser vistas querendo nascer aqui e ali. Mas, por todo o caminho, o que mais chamava a atenção era o gramado que cobria todo o chão e deixava de existir apenas na parte da trilha. Quando choveu, noite passada, uma das grandes árvores caiu e fechou o caminho. Tiveram que trazer um grande trator para puxar os enormes galhos e liberar a estrada de novo. Não foi fácil convencer o dono de que se não tirassem aquela grande planta dali poderia acontecer alguma coisa e ninguém teria como socorrê-lo de carro. É que ele morava ali sozinho, com os empregados e seis cachorros. Era velho e doente. Mais doente do que velho. Mas muito velho mesmo. Caso adoecesse e precisasse de socorro, daria um grande trabalho levá-lo ao hospital. Ele não gostava de médicos. Dizia que eram todos uns tolos que ganhavam a vida procurando doenças nas pessoas. Dizia que se fosse ao médico ele lhe daria uma lista de quinhentas doenças e o internaria no hospital até a morte.

   Durante a noite, enquanto a chuva insistia em cair, o velho tomava um chá. Não tomava café de jeito algum. Dizia que era ruim para os dentes, deixava-os escuros. A verdade é que o velho tinha os dentes mais amarelados que fruta madura tirada do pé. A empregada serviu o chá às oito horas. Todo o dia tinham que servir o chá as oito, logo depois do jantar. Apesar de viver sozinho e não ter o que fazer, o velho mantinha uma rotina rígida e nada poderia acontecer fora do previsto. Já bastava aquela chuva cair na hora em que ele deveria estar tomando seu chá da noite na varanda. Teve que tomar o chá sentado na mesa da cozinha, sentindo o cheiro da galinha velha que a cozinheira preparava para o almoço do outro dia.

   Não conseguiu dormir direito. Aquele cheiro de galinha morta e cozinhando o atormentou durante toda a noite. Teve vários pesadelos. Sonhou que duas galinhas gigantes vinham ao seu encontro, cada uma segurando um machado. Queriam matá-lo. Quanto mais ele corria, mais perto as galinhas pareciam estar. Sentia o cheiro de suas penas e podia sentir também a maciez delas em seu pescoço velho. Que coisa mais nojenta, sentir o cheiro do suor de uma galinha correndo. Levantou-se atordoado. Chamou a empregada. Ela apareceu com os cabelos assanhados, a camiseta de pano furada embaixo do braço era muito curta e deixava a mostra suas pernas roliças. Mas o velho era velho demais até para pensar nisso. Nem deu atenção às pernas da moça. Pediu apenas que trouxesse um pano úmido para resfriar-lhe a cara. Também não deu atenção quando a moça saiu resmungando por que ele esquecera-se, como de costume, de pedir ”por favor,”. Onde já se viu, chamar aos gritos àquela hora da madrugada, apenas para pedir um pano úmido. Ele que fosse buscar. A empregada voltou para o quarto e desta vez dormiu como uma pedra. Ou pelo menos fingiu isso, por que não voltou mais durante toda a noite, apesar do velho ter gritado e gritado.

   Quando percebeu que não havia mais o que fazer, ele levantou-se da cama e foi até a cozinha. Abriu a torneira da pia e observou a água caindo dentro do ralo. Porque que sempre parecia escorrer do mesmo jeito, era o que se perguntava, enquanto olhava a transparência daquele líquido. Abriu e fechou a torneira várias vezes, observando a água correr. Quando cansou da brincadeira, abriu o armário. Até que estava tudo limpo e arrumado. Também, elas ficavam lá o dia todo para isso, para arrumar tudo e deixar limpo. Percebeu que estava faltando alguma coisa. Não era o feijão, nem o trigo de fazer o bolo. Mexeu nos pacotes de arroz, rasgou sem querer um saco de farinha. Ficou com o rosto todo branco. Olhou-se no espelho. Parecia um fantasma, olhe só.

   Ouviu um barulho estranho na rua. Será que era uma coruja, perguntava em silêncio. Foi até a porta, a fim de que pudesse ouvir melhor. Silêncio. O silêncio, não sabia se via de fora ou de dentro. De fora da casa, onde tinha uma coruja calada e pensativa, ou se vinha de dentro, dentro da sua cabeça também estava silêncio. Não conseguia ouvir o que vinha de dentro de sua cabeça. Foi mais perto da porta, tinha certeza de que ouvira uma coruja, acabou por bater a testa na madeira e sentiu uma dor forte, que latejava. Será que dor era o mesmo que ouvir uma voz dentro da cabeça, não sabia. Bateu a cabeça de novo. Dessa vez a dor foi mais forte. Talvez estivesse falando mais alto, a voz-dor, dentro de sua cabeça de velho. Estava tonto. Sentou-se. A cozinheira deixara a galinha recém morta e recém cozinhada em cima do fogão. Olhou para o caldeirão grande, velho e amassado que abrigava a defunta cozinhada. Foi até lá. Destampou a panela. O velho de cara branca de farinha quase vomitou na panela quando sentiu o cheiro do cadáver. A cozinheira deixara a galinha cozinhar com penas e tudo, antes de depenar e poder temperar e assar. Olhou aquele bicho na panela. Suas penas eram cor de laranja, meio avermelhadas. Tirou a galinha de dentro da panela, segurando com as duas mãos, era um bicho muito frágil, a galinha.

   Outro barulho. Não era mais a coruja, devia ter cansado de pensar tanto e adormecera em sua grande sabedoria. O velho já ouvira falar muitas e muitas vezes que coruja é um animal muito inteligente. Ele não acreditava nisso. Como também não acreditava em muitas outras coisas. A água em que a galinha fora cozinhada estava pingando nos pés do homem. Mas ele não percebeu. Estava aguçando os ouvidos para entender que tipo de barulho tinha escutado. Puxava na memória velha e ruim e tentava reconstituir o momento do barulho. Talvez fosse o vento. O vento também fazia barulho, falava, de um jeito bem estranho, às vezes, até assustador. É, deve ter sido o vento. Talvez estivesse apenas a desabafar suas mágoas. O vento deve ser cheio de mágoas. Vive por aí, escutando o que as pessoas dizem. Também deve ser cheio de ouvidos. Mas de sua boca enorme saem apenas silvos. E por mais que queira contar o que viu ou ouviu, ele não consegue. O vento deve ser o melhor confidente. Quando o velho preparava-se para contar o seu maior segredo ao vento, sentiu que suas coxas estavam molhadas. Enquanto tentava ouvir o barulho que atribuiu ao vento confidente, abraçou a galinha morta e cozinhada e sujou-se todo com sua água fria que fora quente apenas durante o rápido cozimento pré-depenar-galinha.

   Abriu a porta da cozinha. Ainda estava chovendo e era muito frio quando chovia. Apenas a luz da lua poderia iluminar aquele quintal, mas como chovia, a escuridão era total. O velho saiu com a galinha nos braços. Não sabia o que fazer com ela, estava morta mesmo. Mas não achava justo que fosse depenada após cozida e tivesse um fim tão humilhante. Era humilhante ser galinha. Depois de sofrer tanto nos terreiros, comendo milho cru, tinha que ser cozida, depois depenada e assada. E ainda não parava por aí. Era exposta em toda a sua nudez em pratos enfeitados, como se fosse uma modelo numa capa de revista. Mas não era nas capas de revista que ela se mostrava. Aparecia dourada do calor do forno em pratos cheios de molhos e verduras e era esquartejada durante o jantar ou o almoço ou o que quer que fosse.

   Pisou na terra molhada e seu corpo todo se arrepiou logo, do frio da noite e da chuva. A água que caia continuamente do céu lavou-lhe o rosto de farinha e tirou também o fedor de penas cozidas que o animal morto em seus braços exalava. Atravessou o caminho até o lago e percorreu toda a margem caminhando firme e decidido até a casinha onde guardava as ferramentas. Procurou tateando as paredes no escuro, uma pá. Achou uma grande, que não usava há anos, desde que terminara de construir o cercado onde logo depois colocou os porcos e separou um lugar para os patos e os gansos. Ao sair da casinha de ferramentas, deu uma breve olhada nas águas do lago que piscavam à medida que as gotas de chuva pingavam e se juntavam umas as outras. Será que galinha tem alma, perguntava a si mesmo. Espirrou e esqueceu a pergunta e com ela foi embora também uma possível resposta.

   Andou com a galinha num braço e a pá pesada no outro. Procurou a árvore mais bonita do vale e ao seu lado pôs-se a cavar. Não sem antes, claro, colocar sua amiga defunta num lugar fofo e seco. Difícil achar um cantinho seco naquelas condições, mas por uma amiga se faz de tudo. Até encontrar um cantinho seco embaixo de um galho numa quase tempestade. Cavou durante quase uma hora e suava como um animal de carga, mas nem dava para perceber por que logo a chuva limpava seu suor. Chuva amiga essa, me refresca. Talvez esteja apenas se desculpando por não me deixar tomar o chá na varanda.

   Quando achou que tinha cavado o suficiente observou bem o buraco e percebeu que se não agisse logo formaria ali uma poça de lama e seu objetivo iria por água abaixo e teria que cavar tudo de novo. Tinha que enterrar aquela galinha. Ela merecia um final feliz depois de tudo o que sofrera. Não ia permitir que a desnudassem e a esquartejassem diante de suas vistas. Deu um beijo na amiga antes de cobri-la de terra úmida. Quase afogou a galinha na lama, se ela não estivesse tão morta morreria de novo sufocada, dessa vez. Pôs um galinho no lugar onde a terra agora formava uma pequena montanha. Uma montanha do tamanho de uma galinha. Ou do tamanho de uma defunta galinha. Não sabia o velho, se as galinhas mudavam de tamanho ou não, depois de mortas e enterradas, mas achou melhor não pensar nisso, achou que estava ofendendo a memória de sua amiga. Já a considerava uma velha amiga, ah sim. Era uma galinha amiga e muito querida. Tão querida que o velho passou o resto da noite a velar-lhe o corpo enterrado e inerte. Só não tão inerte por que a chuva teimava em cair e por pouco não desmanchou a montanha de terra que cobria a galinha.

   Ao amanhecer, achou que seu dever estava comprido e resolveu voltar para casa. Tomou um banho e foi tomar o café da manhã, pontualmente as sete e trinta. Um tumulto na cozinha fez o velho perceber que o café não estava pronto. Não o café de beber, por que ele não bebia café, era ruim para os dentes. Mas o café da manhã. A cozinheira disse que alguém havia roubado a galinha que ela ia depenar e assar para o almoço. O mistério do sumiço da galinha ganhava corpo e histórias cada vez mais escabrosas eram criadas na cabeça fértil de pensamentos dos empregados. Mas o que o velho percebia era que hoje não haveria café da manhã.

   Saiu resmungando até a varanda e viu o carro da defesa florestal aparecer no seu jardim. Foi uma luta convencer os homens de que a árvore que caíra não deveria ser removida. Ele não sabia por que, mas precisava contrariar aqueles homens ranzinzas. Já o haviam irritado o bastante àquela manhã e agora ele queria vingança. Irritou os homens até que eles percebessem por si mesmos que o velho nada poderia fazer quanto à remoção da árvore caída e resolvessem eles mesmos chamar o trator e retirar a árvore do caminho.

   Ao meio-dia, como de costume, o velho sentou-se a mesa para o almoço. E, para sua surpresa, um grande porco dourado e nu fora colocado estatelado numa bandeja de prata, no centro da mesa. Aquela cena monstruosa indignou o velho e ele não conseguiu almoçar. Passou à tarde na varanda, sentado em sua cadeira de balanço e observando a bela vista do vale. Sua amiga, recém enterrada, tinha agora um companheiro. O porco que lhe faria companhia nas noites de chuva quando as árvores se remexiam com vento, fazendo barulhos assustadores e que deixariam a pobrezinha com medo. O velho sorriu ao pensar que sua amiga estava agora muito bem acompanhada. O porco era muito valente e iria protegê-la sempre.

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Jacqueline Freire ESCRITO POR Jacqueline Freire Escritora
Maceió - AL

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